março 27, 2010

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

(Amar - Carlos Drummond de Andrade)

março 16, 2010

conversa paralela

Não posso dizer que seja frequente, mas às vezes me acontece de, durante o trabalho, ficar perdida em pensamentos e vir a vontade de escrever umas coisas. Hoje, por exemplo. Eu estava na biblioteca às voltas com um trabalho que tenho de entregar amanhã. O silêncio não era total mas estava de bom tamanho. Ouvia até mesmo uns pios de passarinho vindo das árvores próximas ao casarão. No geral o ambiente era perfeito, e o livro em que eu trabalhava era muito inspirador, e chegava a ser difícil me concentrar no lado técnico da coisa: a vontade era de me deixar levar, sem ter de pensar em pontuação, ou estrutura de frase, ou colocação de pronome e todo o resto. Só que enquanto lia o texto meio seduzida e ao mesmo tempo tentava me concentrar nesses aspectos menores mas necessários da língua, uma conversinha paralela - os tais pensamentos - começou a surgir dentro da minha cabeça. Uma conversinha que eu tentava abafar para não atrapalhar a concentração, mas que vinha justamente a propósito do que estava a ler. Conseguia às vezes, não conseguia outras.
O facto é que por isso o trabalho rendeu menos: se ontem li umas tantas páginas em pouco mais de três horas, hoje levei quase toda a tarde para ler, em quantidade, menos que ontem. Isso porque a tal conversa paralela frequentemente me obrigava a ler e reler as frases pra ver se estava tudo no lugar certo.
No entanto o livro acabou, e o trabalho será entregue na data marcada.
E agora estou a pensar que essa "dispersão concentrada" (ou concentração dispersa?) de hoje deve ter sido provocada justamente por o livro estar no fim. No fundo, resistia a que esse prazer que se foi entranhando na minha rotina da última semana terminasse pela imposição de um prazo.
E a tal conversa paralela não era mais que um dado subversivo, e uma resistência ao fim.

março 01, 2010

obrigada, Ary Barroso



sol é outra coisa


Sol é outra coisa. Hoje me levantei, já mais pra tarde que pra cedo, e ao ver essa luz toda abri portas e janelas. Pus os cobertores e travesseiros lá fora pra pegarem ar, e depois fiquei eu mesma como os lagartos. Há somente uma brisa leve. A vida calma desta aldeia retoma a sua rotina da semana. Os passarinhos cantam. No rádio toca Aquarela do Brasil e daqui a pouco o jornal dá notícias. E eu, apesar do mundo turbulento lá fora, de repente me lembro do título daquele filme que diz: a vida é bela.

lembranças e esquecimentos

Escrever não é algo que eu simplesmente decida fazer e pronto; quer dizer, é um pouco querer e um pouco o momento em que calha. Gosto quando as palavras simplesmente vêm, mesmo baralhadas, mas vêm e resta a mim recolhê-las e combiná-las como desejo, enfim. Sinto então como se fossem a ponta de um véu que se eu puxasse mais um pouquinho...
Mas nem elas nem eu temos tido sorte. Outro dia estava no trem, durante aquela meia hora de viagem desde a minha casa até o destino, e não sei por que tive vontade de pegar num papel e num lápis e esboçar uma frasezinha que vinha vindo, umas palavras insistentes que queriam se encaixar num puzzle qualquer. Mas eis que naquele dia saí sem papel, sem lápis ou caneta na bolsa; tinha esquecido mesmo o celular - porque no celular até podia registrar qualquer coisa. Desafiei então a minha memória, pra ver se pelo menos algo não se perdia... - o que foi esperar demais: uns dez minutos depois e eu já nem mesmo me lembrava que há pouco tinha querido reter uma palavra que fosse.
Hoje me fiz uma promessa: não esquecer de lembrar para depois não deixar cair tudo no esquecimento.