outubro 28, 2011

(também presto atenção aos rios)




"Quando escrevo, repito o que já vivi antes.
E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente.
Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo
vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser
um crocodilo porque amo os grandes rios,
pois são profundos como a alma de um homem.
Na superfície são muito vivazes e claros,
mas nas profundezas são tranqüilos e escuros
como o sofrimento dos homens."




João Guimarães Rosa


agosto 16, 2011

do tempo, da falta, do reencontro

Planalto central - Goiás


Todos os anos, quando reencontro minha família, há um desejo de compensar o tempo que não estivemos juntos: anos. Houve tempo em que ficávamos muito mais tempo sem nos ver, e por isso hoje o reconhecimento mútuo, ainda que aconteça, tornou-se mais lento, e limitado, e cheio de surpresas: nos conhecemos e nos desconhecemos. Existem lacunas entre nós que não conseguimos cobrir, e quando há alguma palavra inesperada, ou uma revelação qualquer, tenho de fazer um reset da história que eu criara (e eles também, certamente) para atualizá-la e torná-la mais próxima da história que de fato foi, ou parece ter sido, e que desemboca no que hoje é. Quero agarrar o tempo para ter mais tempo pra nós, mas ele escapa sempre. Quero recuperar o que não foi vivido junto, e isso não é possível. Não chega a ser frustrante, mas há sempre uma tensão entre o que foi perdido e não se recupera e o que agora vivemos, surpreendidos. Surpreendidos porque, apesar das lacunas e das estranhezas, há uma coisa que nos aproxima e nos faz sentir que somos uns dos outros. Simplesmente nos conectamos, e pronto. Palavras não são precisas.
Acho isso um privilégio.

junho 10, 2011

cidade-floresta


"E podemos passar nisto uma vida, e nunca chegámos a sair da cidade."

Frase da jornalista-cronista-escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho – no momento vivendo no Rio de Janeiro –, depois de um dia a passear pela floresta da Tijuca, na mata Atlântica.
Eu sei bem do que ela está falando: sinto o cheiro, sinto a temperatura, ouço os sons.

Foto de ALC. Blog: Atlântico-Sul

"snack-bar Flor de Tília"


Não faz muito tempo fui a Benfica buscar um trabalho numa editora que acabou de se mudar pra lá, o que foi ótimo pra mim porque ficou muito mais à mão. Vindo de Cascais, tenho que pegar o trem e depois um ônibus - mesmo assim, facilitou a vida.

Mas o melhor de tudo foi poder voltar a Benfica. Não que seja um lugar especialmente aprazível, mas sim porque morei ali perto quando vim pra Portugal, e esse caminho que voltei a fazer é em parte o caminho que fazia quando cheguei aqui. Naquela época morava na Reboleira (não me perguntem que nome é esse porque eu não sei), que por ter sido o primeiro lugar onde vivi nesse país, ficou marcado pelos melhores motivos: eu estava onde queria estar.

Saindo então da editora, já com trabalho na mão, parei numa tasquinha muito simples, essa da foto, que fica bem em frente à estação do trem. Pedi café com leite quente e uma tosta mista. Então sentei na esplanada e fiquei olhando em volta, e me lembrando... Nisso o João me liga e então contei pra ele a história toda, e ele se riu muito porque eu estava feliz numa tasquinha de Benfica.

março 17, 2011

saídos dos quadros de Hooper

Na praça de alimentação do shopping. A biblioteca fecha às seis e vim pra cá pra terminar o trabalho que tenho de entregar amanhã de manhã sem falta. Acabo por escolher uma mesa que depois não me serve: a tarde cai e o candeeiro, justamente este aqui, está avariado, a luz intermitente que só percebi depois de já bem instalada: óculos, lapiseira, borracha, a bolsa na cadeira mais próxima, o saco do supermercado com compras - e as provas do livro. Transfiro tudo para outra mesa.
Faltam três páginas ou pouco mais. Olho à volta. O céu já praticamente escuro. Só a luz dos candeeiros, daqueles que ainda funcionam. Música de shopping, ruído apenas, mas que não incomoda porque o livro é ótimo e fico totalmente colada ao texto.
Última página. Acabou. É bom mas é pena, o livro é mesmo ótimo, ainda esticava um pouco mais o trabalho só por prazer de ler isto.
De novo, observo em volta. Poucas pessoas dispersas em cadeiras de cores pálidas. Cabeças baixas, olhar sem direção definida, ou então pregado na tv suspensa. Me faz pensar em Portugal, no porquê de eu ter vindo pra cá, e de estar aqui, hoje, a contar os tostões como quase toda a gente.
Já é noite. Só a luz dos candeeiros refletida nos rostos, mas são todos pálidos, como as cadeiras. Parece um quadro de Hooper. Todos saídos dos quadros de Hooper. Eu também.

janeiro 20, 2011

homenagem aos bichos da casa









Os dias passam. Mesmo que a gente não dê muito por eles, eles passam. E de repente já fui lá longe e já estou de volta. 30 dias, e foi tão rápido...
Mas e os bichos? Não terão certamente esse excesso de consciência dos dias: hoje é quanto, que mês, que horas, qual ano se foi, que tempo virá... e tanto mais os bichos não sabem.
Ou que será que os bichos sabem?
Não sei. (E eles não dizem.)