dezembro 29, 2012

nunca mais

Tenho a nítida sensação de que chego sempre "atrasada" pras coisas, mas de alguma forma esse tempo é o meu tempo, e por isso deve estar certo. Hoje, por exemplo, li pela primeira vez "Banho de mar", uma crônica de Clarice Lispector, ela ainda criança indo aos banhos de mar em Olinda, com a família, onde assistiam ao nascer do sol. "Eu nunca fui tão feliz quanto naquelas temporadas de banhos em Olinda, Recife."/"Como explicar o que eu sentia de presente inaudito em sair de casa de madrugada e pegar o bonde vazio que nos levaria para Olinda ainda na escuridão? De noite eu ia dormir, mas o coração se mantinha acordado, em expectativa."/"A quem devo pedir que na minha vida se repita a felicidade? Como sentir com a frescura da inocência o sol vermelho se levantar? Nunca mais? Nunca mais. Nunca."

novembro 01, 2012

marcos

Às vezes me vejo num mudo diálogo com certas coisas – aparentemente inanimadas tal como entendemos; mas sei que vida e ânimo são tudo o que elas encerram sem que no entanto o percebamos a não ser... por força de uma súbita ligação. Como se elas conectassem essa vida conosco somente quando um elo sentimental se estabelecesse. (Memória, nem sempre óbvia, ou do que nunca houve, mas de algum modo memória.)
Hoje vi duas fotos. De dois lugares. (Tenho afeto pelos lugares, mesmo aqueles que não foram meus). As fotos desses lugares mostravam uma praça e uma grande pedra. São uma praça e uma pedra das minhas memórias, marcos de momentos da minha vida, da vida de uma coletividade que é minha também. Eu as possuo e elas a mim. Somos eternamente umas das outras. Isso é muito engraçado e muito bom: tenho uma pedra; tenho uma praça. Brinco com elas e, de longe, nos dizemos "olha eu aqui!"


marco: pedra ou estaca que demarca terrenos ou distâncias; fronteira; pedra que assinala um acontecimento; o que serve de referência; aquilo que simboliza um lugar e/ou um acontecimento importante. [F.: Do germânico marka, pelo lat. medv. marcus. Hom./Par.: marco (sm.), marco (fl. de marcar).]

maio 20, 2012

brêtema




brêtema: mijona, "quando molha muito"; orvalhenta, "quando molha algo"; barrufa, "quando as partículas de água são imperceptíveis"; malina, "quando queima as meses, os frutos e as plantas sensíveis"

maio 05, 2012

Soneto II – Mario Faustino


Necessito de um ser, um ser humano
Que me envolva de ser
Contra o não ser universal, arcano
Impossível de ler

À luz da lua que ressarce o dano
Cruel de adormecer
A sós, à noite, ao pé do desumano
Desejo de morrer.

Necessito de um ser, de seu abraço
Escuro e palpitante
Necessito de um dormente e lasso

Contra meu ser arfante:
necessito de um ser sendo a meu lado
Um ser profundo e aberto, um ser amado.


















único livro de Mário Faustino (1930-1955)

abril 30, 2012

em franjas



Nesses últimos tempos, quem dera eu soubesse tocar um instrumento. Acho que não um violoncelo, que apuraria o ruim ainda mais, para pior. Porque o violoncelo, mesmo vibrante, tem sempre um timbre melancólico. Não, não, um violoncelo não me faria bem.  Já o contrabaixo, mesmo sendo cordas (porque toda a situação exige cordas), seria para outra ocasião.
Mas talvez um violino, rascante, aflito, com nervos, aos gritos. Com certeza arrebentariam as cordas: as cordas não resistiriam ao que eu exigiria delas. Nem os vizinhos, que me viriam bater à porta e dizer "pare!". E eu não saberia o que responder. Talvez dissesse: "mas preciso!"
Esses dias têm sido assim: "cordas" em franjas. Mas que só eu ouço.



(foto de João Amaro)

abril 17, 2012

asa branca



Quando olhei a terra ardendo
Com a fogueira de São João
Eu preguntei, a Deus do céu, ai
Por que tamanha judiação
Que braseiro, que fornaia
Nem um pé de prantação
Por farta d'água perdi meu gado
Morreu de sede meu alazão
Inté mesmo a asa branca
Bateu asas do sertão
Entonce eu disse adeus Rosinha
Guarda contigo meu coração
Hoje longe muitas légua
Numa triste solidão
Espero a chuva cair de novo
Pra mim vortá pro meu sertão
Quando o verde dos teus oios
Se espaiar na prantação
Eu te asseguro não chore não, viu
Que eu vortarei, viu
Meu coração

Asa-Branca é uma canção de choro regional (popularmente conhecido como baião) de autoria da dupla Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, composta em 3 de março de1947.

abril 05, 2012

perto do coração selvagem

Sua felicidade aumentou, reuniu-se na garganta como um saco de ar. Mas agora era uma alegria séria, sem vontade de rir. Era uma alegria quase de chorar, meu Deus.


Clarice Lispector 
Perto do coração selvagem

março 24, 2012

boa viagem


R.
vi hoje na tv um documentário passado na região do Outback da Austrália, onde só os aborígenes conseguiam sobreviver. Incrível, lindíssimo, imprevisível: a natureza em seu estado mais puro. E, é claro, foi impossível não lembrar que você está indo pra lá por esses dias, e vibrei por isso. A graça das viagens é mesmo esta: reencaixar-nos no mundo (e em nós) de outra forma.
Traz sim um canguruzinho.
Boa viagem.

 o uluru


março 18, 2012

sou qualquer coisa natural


Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Com um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes,
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva toda.

Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
Eu olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predilecta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer coisa natural

Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

"O Guardador de rebanhos" – Alberto Caeiro

Foto: "bluebird sights", jtravism (Flickr)

março 13, 2012

"maravilhindinho"

Foto de Alex Almeida (Facebook)


(emprestado da página de Luis Manuel Gaspar)



Folheando Llansol (...), me encanto numa primeira página. Diz Maria Gabriela LLansol que ela nunca usa a palavra "civilização" porque esta palavra "coloca imediatamente os animais, as plantas, a terra e os seus elementos numa posição de instrumentos e de subordinados face ao homem". Será que finalmente vou ser abduzida por esta autora em geral tão difícil?

(da página de Angela Lago no Facebook)



as casas

Vilhelm Hammershøi [1864-1916], «la danse de la
poussière dans les rayons du soleil», 1900


Vilhelm Hammershøi, «les quatre pièces», 1914



AS CASAS I

As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir

Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios

As casas fluem de noite
sob a maré dos rios

São altamente mais dóceis
que as crianças
Dentro do estuque se fecham
pensativas

Tentam falar bem claro
no silêncio
com sua voz de telhas inclinadas


Luiza Neto Jorge, «As Casas», Terra Imóvel, 1964
Poesia 1960-1989, Lisboa, Assírio & Alvim, 2.ª ed., 2001

março 02, 2012

o que...?


Rallenti, o compasso dos dias – contemplai os objetos, pacientes, à espera; o sol que chega todas as manhãs, as árvores magníficas em volta, a luz entre os ramos, sussurros, um cheiro que vem no ar... Mas às vezes, inquieta, pergunto: o que...?


(foto de Fátima Ribeiro: lojade300.blogspot.com)

fevereiro 18, 2012

"Carnaval era meu, meu."


"E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu."

Clarice Lispector