dezembro 29, 2010

na roça, em Goiás, à espera do novo ano

minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá
as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá
nosso céu tem mais estrelas
nossas várzeas têm mais flores
nossos bosques têm mais vida
nossa vida mais amores



novembro 22, 2010

paisagem restrita

Não tenho conseguido escrever nada. Sinto falta. Acho que, como dizem, "a fonte secou"... ou talvez tudo esteja a me passar ao largo, o que é grave; ou ainda pode ser que o panorama não seja inspirador e eu tenha me deixado apenas ficar entre as paredes brancas desse meu pequeno espaço, de onde só observo o sempre renovado varal da vizinha do terceiro andar. Em vez das ruas, das montanhas ao longe, ou do mar que se esconde atrás do prédio da frente, contemplo lençóis, fronhas, toalhas, aventais, as camisas que o marido traz na volta do ginásio, e mais uma infinidade de peças de tecido cheirando a um perfume floral que entra pela minha casa quando abro as portas ao ar da manhã e ao leve sol de Outono.
O trabalho é escasso. O trabalho, que me leva para além das fronteiras desta casa, desta rua, desta aldeia, o trabalho é escasso. Donde me deixo ficar a vislumbrar varais, enquanto há ruas lá fora, há montanhas ao longe, e há o mar atrás do prédio da frente.
No entanto sei que mês que vem ficarão para trás o varal, o prédio, a rua, a aldeia, e este mar pequeno como a minha janela.

Ricardo Reis me diz coisas e eu lembro de mim

outubro 27, 2010

Lisboa by mobile


Ontem fui a uma gráfica em Lisboa e nem passou pela minha cabeça que iria andar por ruelas onde andei e ver um entardecer, em Belém, como este - que tento mostrar mas que não aparece aqui nem como a décima parte da beleza que era. Se tivesse previsto, é claro que teria levado a minha Panasonic.
Já me disseram que como a luz de Lisboa quase não há; talvez a de Istambul (que não conheço... ainda).
Lisboa e o Tejo formam no seu conjunto uma composição de grande beleza: a beira d'água tão perto, os barcos que passam e atravessam o rio para a outra margem, a foz do Tejo e o Atlântico além, o casario, a baixa lisboeta e as colinas do lado de cá - tudo forma um conjunto que a gente não cansa de admirar. Quem atravessa a Ponte 25 de Abril, vindo de Almada, ou vem pela Vasco da Gama, tem essa perspectiva ampla, e sempre, sempre se admira pela perfeita disposição de toda a paisagem. Quem já veio, viu. Quem vier, verá.
Terminámos o dia num barzinho mesmo à beira do rio, com luz de velas sobre a mesa, e um resto de sol depois do mar.

outubro 07, 2010

declaração de amor

3 de outubro - fui votar



À última hora é sempre melhor? Ou isso é uma mania que a gente tem? Será cultural? Quando cheguei à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, muita gente chegava comigo. Passava das 15.30 e as portas fechariam às 17 horas. Quantas pessoas teriam ido votar de manhã?

Tempo péssimo. Mas nem por isso a paisagem era cinzenta: havia todas as cores.

Ao chegar, me deparei logo com um mural com as listas dos nomes por ordem alfabética. Eu votaria na seção 162. Entrei. Várias filas para trocar a versão antiga do título de eleitor pela nova. Ansiosa, preferi votar logo e só depois vir pra fila da troca.
Pedi informações e soube que teria de virar no corredor à esquerda e descer um lance de escadas. À porta da seção, perguntei logo se poderia votar pra senador e deputados, e fiquei sabendo que seria só pra presidente. Frustração. Como se eu tivesse ido ali pra nada.

Ao entrar na sala, fiquei supresa com quatro mesários para o pouco movimento da seção, mas deve ter sido por esquecimento, por ter ficado alguns anos sem votar, antes de finalmente transferir o meu título. Também senti uma emoçãozinha, não vou negar.

Meu voto deve ter levado uns 3 segundos, sei lá. Tão rápido. Pá-pum. Essa maquininha é mesmo eficaz. E pensar que antes era aquela papelada toda, com tantas possibilidades de fraude.
Acabou. Só isso?

Voltei pro salão, diposta a ficar na fila, a maior, dos nomes que começam com a letra A, e foi aí que tirei a maioria das fotos. Neguinho me olhava desconfiado, o flash incomodando, mas eu mandei ver. Não queria perder aquele instante. Se tivesse levado a máquina boa, teria me animado mais e as fotos teriam ficado mais apresentáveis. Mas levei a máquina velha, e só deu pra isso aí.

Quando saí do prédio, já não chovia, e o vento era pouco. Várias pessoas que também abandonavam o prédio comentavam entre si: "e aí, votou na Marina?" Foi o único nome que ouvi. Explicitamente.

Depois entrei no metrô em direção à estação dos comboios. Hora de voltar pra casa.

abril 21, 2010

cena muito breve


Vou a Lisboa. Viagem maior do que de facto é. Um esforço para tentar reinventar os dias que, nesses dias de hoje, são horas lentas, pesadas, sem fim. O fiscal se aproxima; tenho o bilhete nas mãos e observo, enquanto ouço aquelas canções que trazem todo o resto que já foi e que ainda é. Nas janelas passa o mundo veloz: a paisagem conhecida, as casas, o mar, mas nem todos dão por isso. Em mim as referências momentaneamente se esbatem, embalada pelos correr da máquina que se agarra aos trilhos. Fecho os olhos e ouço, a música, o atrito das ferragens, a conversa ao lado.
O sinal sonoro que pontualmente me desperta do torpor.
Chegamos enfim, e lá está ela: a cidade. Última paragem antes de seguir - para onde?

março 27, 2010

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

(Amar - Carlos Drummond de Andrade)

março 16, 2010

conversa paralela

Não posso dizer que seja frequente, mas às vezes me acontece de, durante o trabalho, ficar perdida em pensamentos e vir a vontade de escrever umas coisas. Hoje, por exemplo. Eu estava na biblioteca às voltas com um trabalho que tenho de entregar amanhã. O silêncio não era total mas estava de bom tamanho. Ouvia até mesmo uns pios de passarinho vindo das árvores próximas ao casarão. No geral o ambiente era perfeito, e o livro em que eu trabalhava era muito inspirador, e chegava a ser difícil me concentrar no lado técnico da coisa: a vontade era de me deixar levar, sem ter de pensar em pontuação, ou estrutura de frase, ou colocação de pronome e todo o resto. Só que enquanto lia o texto meio seduzida e ao mesmo tempo tentava me concentrar nesses aspectos menores mas necessários da língua, uma conversinha paralela - os tais pensamentos - começou a surgir dentro da minha cabeça. Uma conversinha que eu tentava abafar para não atrapalhar a concentração, mas que vinha justamente a propósito do que estava a ler. Conseguia às vezes, não conseguia outras.
O facto é que por isso o trabalho rendeu menos: se ontem li umas tantas páginas em pouco mais de três horas, hoje levei quase toda a tarde para ler, em quantidade, menos que ontem. Isso porque a tal conversa paralela frequentemente me obrigava a ler e reler as frases pra ver se estava tudo no lugar certo.
No entanto o livro acabou, e o trabalho será entregue na data marcada.
E agora estou a pensar que essa "dispersão concentrada" (ou concentração dispersa?) de hoje deve ter sido provocada justamente por o livro estar no fim. No fundo, resistia a que esse prazer que se foi entranhando na minha rotina da última semana terminasse pela imposição de um prazo.
E a tal conversa paralela não era mais que um dado subversivo, e uma resistência ao fim.

março 01, 2010

obrigada, Ary Barroso



sol é outra coisa


Sol é outra coisa. Hoje me levantei, já mais pra tarde que pra cedo, e ao ver essa luz toda abri portas e janelas. Pus os cobertores e travesseiros lá fora pra pegarem ar, e depois fiquei eu mesma como os lagartos. Há somente uma brisa leve. A vida calma desta aldeia retoma a sua rotina da semana. Os passarinhos cantam. No rádio toca Aquarela do Brasil e daqui a pouco o jornal dá notícias. E eu, apesar do mundo turbulento lá fora, de repente me lembro do título daquele filme que diz: a vida é bela.

lembranças e esquecimentos

Escrever não é algo que eu simplesmente decida fazer e pronto; quer dizer, é um pouco querer e um pouco o momento em que calha. Gosto quando as palavras simplesmente vêm, mesmo baralhadas, mas vêm e resta a mim recolhê-las e combiná-las como desejo, enfim. Sinto então como se fossem a ponta de um véu que se eu puxasse mais um pouquinho...
Mas nem elas nem eu temos tido sorte. Outro dia estava no trem, durante aquela meia hora de viagem desde a minha casa até o destino, e não sei por que tive vontade de pegar num papel e num lápis e esboçar uma frasezinha que vinha vindo, umas palavras insistentes que queriam se encaixar num puzzle qualquer. Mas eis que naquele dia saí sem papel, sem lápis ou caneta na bolsa; tinha esquecido mesmo o celular - porque no celular até podia registrar qualquer coisa. Desafiei então a minha memória, pra ver se pelo menos algo não se perdia... - o que foi esperar demais: uns dez minutos depois e eu já nem mesmo me lembrava que há pouco tinha querido reter uma palavra que fosse.
Hoje me fiz uma promessa: não esquecer de lembrar para depois não deixar cair tudo no esquecimento.

fevereiro 17, 2010

hoje é quarta de cinzas...



Tristeza não tem fim
Felicidade sim

A felicidade é como a gota
De orvalho numa pétala de flor
Brilha tranquila
Depois de leve oscila
E cai como uma lágrima de amor

A felicidade do pobre parece
A grande ilusão do carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Pra fazer a fantasia
De rei ou de pirata ou jardineira
Pra tudo se acabar na quarta feira

Tristeza não tem fim
Felicidade sim

A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve
Mas tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar

A minha felicidade está sonhando
Nos olhos da minha namorada
É como esta noite
Passando, passando
Em busca da madrugada
Falem baixo, por favor
Prá que ela acorde alegre como o dia
Oferecendo beijos de amor

Tristeza não tem fim
Felicidade sim

A Felicidade - Tom Jobin e Vinícius de Moraes

carnaval em Portugal - singelo mas convicto




fevereiro 05, 2010

chuva no planalto central - Goiás, Brasil


É chuva anunciada. É torrente que mata a sede - a da terra e a nossa.
Lembro da primeira vez que vi, cortinas de água, colunas diáfanas e móveis.
E eu ali simples expectadora do espetáculo natural sob um céu sem fim e farto.
A gente não se dá conta, mas a isso chama-se privilégio.