«O passarinho negro estava pousado num ramo abaixo, à altura de seus
olhos. E impedido de voar pelo olhar abrutalhado do homem, mexia-se cada
vez menos à vontade, tentando não encarar o que estava para lhe
acontecer, alternando nervosamente o apoio do corpo numa ou noutra pata.
Assim os dois ficaram se defrontando. Até que com a mão pesada e
potente o homem pegou-o sem machucá-lo, com a bondade física que tem uma
mão pesada.
O pássaro tremia todo na concha da mão sem ousar piar. O homem olhou com
uma curiosidade grosseira e indiscreta a coisa na sua mão como se
tivesse aprisionado um punhado de asas vivas. Aos poucos o pequeno corpo
dominado deixou de tremer e os olhos miúdos se fecharam com uma doçura
de fêmea. Agora, contra os dedos extremamente auditivos do homem,
somente a batida diminuta e célere do coração indicou que a ave não
morrera e que o aconhego a resignara enfim a descansar.
(...)
O homem olhou dócil o passarinho. Sem comando próprio, seus dedos agora
inocentes e curiosos deixaram-se obedecer aos movimentos extremamente
vivos da ave, e abriram-se inertes: o pássaro voou numa faísca de ouro
como se o homem o tivesse lançado.(...) Quando o homem enfim ergueu os
olhos, o passarinho perturbado o esperava como se só tivesse lutado
porque pretendia ceder. Martim estendeu a mão ferida e pegou-o com
firmeza sem esforço. Dessa vez a ave agitou-se menos e, reconhecendo o
antigo abrigo, acomodou-se para adormecer. Com o leve peso a carregar, o
homem continuou sua marcha entre pedras.»
(passagem do livro A Maçã no Escuro, de Clarice Lispector)
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