Aquela madrugada vinham cheiros em minha boca. De longe de todos os matos vinham cheiros de frutas que ela vinha. Vinha o que de noite os pássaros estavam dormindo o que os regos estavam murmurando e o que as árvores falam pros joão-pintos... Vinham também esses começos de coisas indistintas: o que a gente esperou dos sonhos os cheiros do capim e o berro dos bezerros sujos a escamas cruas...
poema de Manoel de Barros (in "Compêndio para uso dos pássaros") fotografia de Lúcia Araújo
Depois de uma semana inteira trabalhando o dia todo (exceto na 3ª, quando fui à Ericeira), resolvi me proporcionar um sábado agradável e ir a Queluz - lugar que tem pra mim um forte significado afetivo, porque em tempos (quando morava ali perto) era onde ia com o J. num restaurantezinho muito simpático, com gente simpática, comida boa e tranquilo, sem zorra. Era um recanto nosso para conversar e usufruir da nossa, além de tudo, grande amizade. Temos vindo a perder esse espaço, embora a amizade tenha se fortalecido cada vez mais com os anos.
Mas enfim, o brilho de Queluz não é só por isso. É pela presença do Palácio de Queluz, residência de todos aqueles personagens da história portuguesa e nossa. Lembro da primeira vez que fui lá... fiquei olhando demoradamente o quarto de D. Pedro I... pra ver se conseguia encaixar na minha cabeça que ele não tinha sido ficção - que é como muitas vezes, inevitavelmente, acabamos por sentir os persongens da história, mais próxima ou não. Olhava os corredores, pensando que tinham passado pelos mesmos locais a tal Carlota Joaquina, D. João VI, D. Maria, e tantos outros vivos naquele tempo, mas mortais como nós. Entrar nesses lugares confunde a minha percepção do tempo - o passado no presente, o presente no passado - e eu gosto dessa sensação...
S. S.:
Entendo essa sua sensação ao pisar locais que foram pisados por personagens históricos - é como se fosse preciso isso para se convencer de que existiram mesmo. Lembro de que, depois de dois anos pesquisando intensamente, fui a Goiás buscar detalhes que me faltavam. Só assim pude sentir de fato como foi uma aventura grandiosa enfrentar aqueles ermos. Em certos lugares eu dizia: é mesmo, ele pisou aqui. Sinto falta de um lugar no Brasil onde eu possa sentir Leopoldina. A atual Quinta da Boa Vista não é o lugar em que ela viveu, e sim uma construção posterior, durante o reinado de Pedro II. Tenho muita vontade de ir a Viena para pisar os lugares em que ela nasceu e cresceu, mas sei que não há nada ali que a lembre, nem mesmo um retrato. Mas até essa ausência é eloqüente - Leopoldina é aquela que a História e o mundo esqueceram (em algumas genealogias ela nem é citada entre os filhos de Francisco I) e só aos poucos, e muito recentemente, vem sendo ressuscitada. Me faz sentir ainda mais a solidão dolorosa em que ela viveu.
abril 10, 2009
Vinha subindo a rua. Vinha pensando. Olhava a vida à volta. Sentia os cheiros e via as cores. Sentia o ar mais fresco da temperatura que hoje baixou um pouco. Vinha subindo a rua e sentindo esse prazer. Mas não sei porquê... é raro eu sentir isso sem pensar no lado efêmero das coisas. Não consigo sentir que tenho algo sem logo pensar que posso perdê-lo. Talvez sejam os tempos que chegaram. Ah se fosse possível estar aqui, subindo a rua, a sentir a Primavera, e ao mesmo tempo estar com aqueles que estão no meu pensamento; fazê-los sentir que não os abandonei.
Com açúcar, com afeto, fiz seu doce predileto Pra você parar em casa, qual o quê Com seu terno mais bonito, você sai, não acredito Quando diz que não se atrasa Você diz que é operário, sai em busca do salário Pra poder me sustentar, qual o quê
No caminho da oficina, há um bar em cada esquina Pra você comemorar, sei lá o quê Sei que alguém vai sentar junto, você vai puxar assunto Discutindo futebol E ficar olhando as saias de quem vive pelas praias Coloridas pelo sol
Vem a noite e mais um copo, sei que alegre ma non troppo Você vai querer cantar Na caixinha um novo amigo vai bater um samba antigo Pra você rememorar
Quando a noite enfim lhe cansa, você vem feito criança Pra chorar o meu perdão, qual o quê Diz pra eu não ficar sentida, diz que vai mudar de vida Pra agradar meu coração E ao lhe ver assim cansado, maltrapilho e maltratado
Como vou me aborrecer, qual o quê Logo vou esquentar seu prato, dou um beijo em seu retrato E abro meus braços pra você
Eu adoro chapéus. São a minha vaidade. E olha que nem sou daquelas pessoas que ficam bem com qualquer arranjo que façam na cabeça: um lenço, um coque, um capuz, uma touca, um boné ou um chapéu com abas. Há quem fique uma maravilha. Não é o meu caso: é só porque acho o chapéu um adereço muito interessante. Às vezes paro em frente às vitrines das luvarias (acho igualmente lindas as luvas), onde há também chapéus (ou serão lojas de chapéu onde também vendem luvas?) e fico olhando o talhe de cada um, as fitas ou redes ou laços; os tecidos, os tons, o modo como foram arranjados na vitrine; e por fim olho também os preços... quem sabe me atrevo...Hoje já pouca gente usa. Na minha terra, nem pensar! O inverno lá acabou quando acabou a minha infância. O inverno então era friozinho, e dava até pra usar touca de lã. Foi assim que aprendi a fazer tricô: construindo a minha touca de lã. Aqui no hemisfério norte ainda se usa bastante o chapéu, e até encontro muitas ofertas em estilos diferentes para ocasiões diferentes. Uma tentação. Já na minha cidade, no hemisfério sul, deve haver uma única loja (a da foto), que eu nem sei como sobrevive! Entrei lá uma vez, e as pessoas que encontrei me fizeram pensar que aquilo é coisa de família, que veio vindo pelas diversas gerações, talvez desde um avô muito antigo, o mais provável imigrante. Saí da loja com a história da família já toda imaginada.Sou assim: uma visitante de lojas de chapéus e de luvas onde teço as minhas histórias e não compro nada.
A mesma Chapelaria Alberto no início do século XX:
(...) Quanto aos diminutivos são uma coisa deliciosa na tua obra. A pena foi serem feitos quase sempre à portuguesa. Você já reparou que o diminutivo brasileiro ainda é mais carinhoso que o português? Eu creio que isso nos veio do fundo amoroso do negro. Bodezinho pra nós ficou bodinho, que é uma maravilha e a que nada se compara no mundo das línguas que conheço. É engraçado, agora que começo a escrever brasileiro, tenho usado uma quantidade enorme de diminutivos. Você compreende: a gente não pode fingir, quer falar brasileiro mas isso não basta. É preciso sentir brasileiro também. Pus isso num poema que estou fazendo, pequenininho aliás, "O poeta come amendoim", e que assim que ficar pronto te mandarei, já está pronto até, mas tem umas coisas que não gosto, eu pus um diminutivo que é um achado, veja:
"A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos. Silêncio! O imperador medita os seus versinhos. Os Caramurus conspiram na sombra das mangueiras."
Não achas estupendo aqueles "versinhos"? É uma caçoadinha cheia de respeito, cheia de amor nosso, bem brasileiro. Acho um encanto. (...)
Tirado do livro Seria uma rima, não seria uma solução - a poesia modernista, Livros Cotovia, 2005
Se eu fosse falar de umas pessoas de que gosto muito, não sei onde acabaria. Depois não sei onde estaria o limite que passaria a definir as pessoas de que gosto mas nem tão muito assim. Até chegar àquelas que no momento não me agradaria nada ter por perto. Mas como não se trata de uma contabilidade de sentimentos, e porque sou muito capaz de arranjar pretextos para me deixar ficar num estado amoroso, de conciliação ou reconciliação, de afeto quase infantil pelo que está à minha volta, e poder tirar prazer das coisas do viver e não perder nada desse cenário do mundo que está mesmo à frente, é melhor que eu vá ficando por aqui nessa conversa sem eira nem beira.
Em tempos menos bons, tenho urgência em falar dos dias que brilham. Ontem foi um desses dias, passado com amigos. Agora é uma da manhã, acabo de chegar a casa, e vinha subindo a pé as ruas ainda frias do fim de inverno. Estou aqui, agora. Lá fora há um grande silêncio e a árvore em frente ao prédio cheira a jasmim.
"Uma coisa que custa trabalho a entender é que o arquiduque maximiliano tenha decidido fazer a viagem de regresso nesta época do ano, mas a história assim o deixou registado como facto incontroverso e documentado, avalizado pelos historiadores e confirmado pelo romancista, a quem haverá que perdoar certas liberdades em nome, não só do seu direito a inventar, mas também da necessidade de preencher os vazios para que não viesse a perder-se de todo a sagrada coerência do relato. No fundo, há que reconhecer que a história não é apenas selectiva, é também discriminatória, só colhe da vida o que lhe interessa como material socialmente tido por histórico e despreza todo o resto, precisamente onde talvez poderia ser encontrada a verdadeira explicação dos factos, das coisas, da puta realidade. Em verdade vos direi, em verdade vos digo que vale mais ser romancista, ficcionista, mentiroso."
Mas porque alegria não é só carnaval, trago essa outra, essa alegria imensa que é ouvir Xangai cantando "Qué qui tu tem, canário"!
Canarinho da terra Canarinho do rio Canarinho da Bahia
Qué qui tu tem canário Que quando canta arrepia
Sabiá da mata Sabiá congá Sabiá da praia
Qué que tu tem na asa Quando disser não caia
Meu curió do brejo Meu sofrer sem dor E minha lavandeira Qué que tu tem jandaia Que avoa tão ligeira
Gavião peneira Gavião penacho Pato da lagoa Qué que tu vê na água que tanto ti magoa
Minha zabelê Minhas andorinhas Oh meu canarinho Qué que tu tem bichinho Que cisca miudinho Que canta curridinho Que avoa tão baixinho Que não voltou pro ninho Qué qui tu tem canário...
Fazia falta um pouco de alegria nesse blog meio abandonado. As fotos foram tiradas por Bebel Franco, no Rio, e estão no seu blog em bebelfranco.multiply.com.
Estou na praia. É um dia excepcionalmente quente. De repente um golpe de vento arranca-me o chapéu de palha erguendo-o tão alto que parecia um papagaio lançado de cima dum monte. Corro pela areia tentando apanhá-lo mas ele vai velocíssimo. Continuo a correr. A areia queima-me os pés saltam-me lágrimas dos olhos. Não posso correr mais. Não consigo continuar nem regressar. Sinto-me desesperada. Caio no chão. Vou ficar aqui morrer queimada. Depois claro o chapéu poisou simplesmente ao meu lado.
Hoje senti uma estranha e inesperada leveza quando resolvi dizer o que sentia e usar as palavras para dar nome aos bois. E foi para o último ser a quem eu pensava um dia poder dizê-las. O próximo capítulo não deve aparentar, presumo, uma grande mudança de rumo. Mas agora sob essa aparência jaz aquilo que antes de hoje era intocável. Nos últimos tempos tenho me surpreendido muito com as coisas.
Lisboa. Hoje C. insistia que eu ficasse aqui de vez; que desfizesse os laços cariocas e me aportuguesasse; ao que eu respondi jamais - com exclamação. Ele não entende e eu não soube e não sei explicar que gosto é desse lusco-fusco, desse estar entre, de não me decidir por um ou outro lado da margem; gosto de ter os pés aqui e o meu coração pousado lá, ou o contrário; gosto dessa dorzinha, desse desassossego, dessa coisa incompleta por completar-se, dessa interrogação. Vá lá alguém como C. entender essas coisas.
Hoje vou começar a ler "Conversa de burros, banhos de mar e outras crónicas exemplares", da Cotovia. Pelos cronistas, mas principalmente porque tenho uma saudade danada da minha terra; porque sei que vou me sentir em casa ao reler Drummond, Rubem Braga, Fernando Sabino, Lima Barreto e uns tantos outros. Porque daqui nem posso ver a constelação do Cruzeiro do Sul. Porque não quero esquecer o Brasil; nem quero que o Brasil me esqueça.
Há pouco eu dizia a S.: a espera comanda os meus dias. E amanhã é ainda mais incerto do que já foi - o que por um lado prefiro, porque prefiro aquela árvore das possibilidades que li no livro do Kundera. Não fosse assim, sufocaria. Os prazos que defino vão ficando ainda mais curtos, e eu, sempre lenta, sinto que vou no começo enquanto olho à volta e parece que o sentido é outro, e que o começo já foi há muito. Será que alguém me ensina a não pensar no tempo que encerra um dia? a não me apegar tanto ao fluir da semana e de todo o resto? Ah, tão bom se me bastasse gozar a existência como outro dia vi alguém fazer: olhar pro já visto e ver pela primeira vez. Fiquei tão comovida que a princípio nem percebi.
Já vamos entrando no meio da tarde do primeiro dia. 2009. Minha amiga dorme; recobra das últimas horas agitadas. Arrumei a cozinha, tratei da roupa, e agora é silêncio. Sagrado silêncio. Volto ao trabalho que preciso entregar na segunda. A chuva ameaça ainda. Mas hoje nada me abala, reconfortada com a companhia e proximidade desta amizade antiga. E porque sinto o ânimo sereno para enfrentar o tempo novo, que não sei o que trará.